Li Doce Amanhã, de Banana Yoshimoto, e cada frase é um convite para a frase seguinte, numa dança orgânica e leve. Em mim doeu, chorei.
O enredo acompanha a experiência de quase morte e luto de Sayo, e sua reconstrução como uma pessoa mais verdadeira depois de tudo. Uma escrita limpa e profunda.
Segundo Sayo, depois de uma EQM, voltamos vendo as coisas com um brilho diferente, uma gratidão diferente, uma compreensão quase cosmológica. Assim como o raio de sol de inverno que entra pela janela do quarto de hospital quando se sai da UTI, ou quando conseguimos finalmente fazer as coisas 100% sozinhos de novo, a vida é única. Ela faz da perda, dela mesma e do namorado que perdeu no acidente, uma semente de recuperação.
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A sensação que Banana transmite com suas palavras é a de querer agarrar o brilho da quase morte e levar para a vida. Andar com ela tatuada no peito, uma garça. Tento/tentei fazer isso, mas…
Mas, como sempre, o cotidiano. Sempre o cotidiano, a rotina.
“Quando eu brilho, o mundo retribui com um esplendor em intensidade equivalente. [...] Eu retornei do outro lado sabendo com clareza que no mundo invisível aos olhos isso com certeza acontecia, e que se mudássemos nossa forma de olhar, seríamos sempre capazes de enxergar essa influência.
[...]
Mas continuamos sendo seres humanos, e a esperança logo cai por terra e o mundo da rotina invariavelmente começa.
O tédio da realidade vai aos poucos corroendo nosso tesouro.” Página 53
Em mim a leitura doeu porque, talvez o que mais dói em mim (e expor isso assim para qualquer um deve ser algum tipo de coragem) é a minha vida ter mudado tão pouco depois que eu quase morri. Continuei na mesma casa, mesmo emprego, mesmo namorado. Penso, talvez esteja romantizando. Porque eu adoraria ter mudado de vida, e dói ter “deixado a oportunidade passar”, mas o INSS me afastou por só três meses, e as contas começaram a vencer.
Percebo que a dor tem muitas camadas. No início, ela parece presa entre nossos ossos e a pele, rígida, criando uma barreira entre nós e o mundo. A dor nos encerra, tentando mesmo ser uma carapaça. Com o tempo, essa mesma dor vai extremizando o corpo, chega na pele, começa a sair. Então, a mágica da dor acontece, que é quando podemos dividi-la com o coletivo. Descobrimos que quase todo mundo tem uma dor parecida para compartilhar.
Fantasmas, metafóricos ou não
O livro traz uma premissa de fantasmas bem bonita também, que me fez pensar no termo “fantasmas do passado". Sempre pensei nisso como memórias persistentes dentro de mim, mas nunca tinha colocado como algo externo porém incorpóreo habitando um lugar. Não quer dizer que porque algo é invisível não ocupe um lugar, não ocupe um espaço.
Co-habitamos com nossos fantasmas o mesmo chão que a vida pisa. Isso tudo é real, como o ar, ou as estrelas que já não existem mais e continuamos vendo.
(algumas situações/pessoas na nossa vida são como essas estrelas mortas, continuamos vendo mesmo quando não existem mais, mas sua presença é real. o céu é um cemitério, e nossas memórias também).
A morte, o fim e o luto são colocadas de forma tão límpida e doce. Não consigo dissociar a iminência da morte com a ocorrência constante da vida, não de forma deprimida ou gótica, mas com um tipo de alívio. Eu amo viver, mas não gosto da ideia da imortalidade.
“O mundo é um lugar onde ignoramos qual será o momento de nossa morte, mas creio que para os seres humanos viver é como nadar em meio a um mar de infinita misericórdia. A cada passo, posso pisar em uma formiga. As pessoas têm a mesma probabilidade de morrer. [...] Embora eu só tenha o tempo presente, isso é em si uma grande riqueza”.
Kitchen
A Editora Estação Liberdade lançou uma nova edição do primeiro romance de Banana Yoshimoto (aquele que a capa deu um bafafá). Quero muito ler! Quem fez a orelha foi a querida Joy Afonso, que pesquisa a autora e é professora de língua e literatura japonesa.
Literatura de Cura
Nas minhas pesquisas, enquadram as obras dela como literatura de cura. Senti lugares como se as palavras tivessem colocando curativos, mas achei bem diferente do que está popular como literatura de cura — no melhor sentido, ainda bem.
Chat GPT
Tenho lido que agora está na moda deixar erros de propósito no texto para que ele fique mais humano. E usar travessão está proibido. Faz só um ou dois meses que não escrevo e tudo já mudou nessa rede social. Será que na próxima vez que eu botar um texto, vai estar tudo diferente de novo?
Ahhh que lindeza ❤️ a escrita da Banana tem esse poder mesmo, tocar em sentimentos que a gente achava que não sentia mais, e daí sentimos de forma bem profunda. Há beleza na dor tbm.
O livro deve ser mesmo um bálsamo. E como sempre forte e sensível a sua escrita...
Que bom ter vc aqui e te ler de novo <3