Como amar mulheres se nos acostumamos ao contrário
A competição que se respira no ar, traição e Elena Ferrante
Estamos todos prontos para odiar uma mulher. Ponto. É isso. Feminista, antifeminista, do crente ao ateu: somos configurados para isso desde que um médico nos tirou de uma vulva e deu um tapa na nossa bunda (ou de um útero climatizado a 38 graus para o ar-condicionado da sala cirúrgica).
Eu sei disso porque eu também sinto isso. E vejo, em grandes rebanhos, homens medíocres sendo perdoados, enquanto mulheres medíocres são apedrejadas até o fim. E, às vezes, elas nem são medíocres, só falaram o que pensaram no momento.
Desde que nossos olhos se acostumam com a luz artificial da energia, somos adaptados a tomar como referência o masculino como melhor. Já estamos carecas de saber (desculpem, calvos).
E, mesmo depois de anos dentro do feminismo, vejo que isso ainda acontece. Acabamos transformando a competição por homem na competição por qualquer outra coisa. Se antes a cara feia era para ter a validação do homem, agora é para ter a validação de sei lá o quê (de uma líder? De uma segregada?), mas continua aí.
Não é como se não existisse irmandade entre mulheres, ela existe, mas às vezes se come de dentro pra fora.
Não lembro quem falou sobre imaginar quem seríamos se não tivéssemos sido condicionadas a ser algo (parece uma coisa que muita gente falou), e me pego pensando nas relações entre mulheres: como seria se não tivéssemos sido incentivadas a nos odiar desde o início?
Eu, como mulher, odiei muitas vezes a principal mulher da minha vida: eu mesma. E também odiei minha mãe, que, diga-se de passagem, não é lá muito agradável — assim como tenho certeza de que ela também se odiou. Mas, com relação ao meu pai, não tenho certeza se isso aconteceu. Não sei se ele já se odiou, embora tenha tomado ações descabidas em vários momentos.
Já vi alguns homens se odiando. Eles chutam a parede, ameaçam se matar. Na maior parte das vezes, porque a mulher não está agindo como gostariam que agisse.
Já as mulheres que vi se odiando... elas podem morder os braços e tirar no próprio sangue. Mas é sempre porque se sustentar tornou-se insuportável. Porque estar presa num pedaço de pele que você é posta a detestar a todo momento, uma hora, corta. Dói.
Talvez por odiarmos a nós mesmas seja tão mais fácil odiar outra mulher do que a um homem.
Então o exercício seria o inverso: aprender a me amar mais, para poder amar outras mulheres. Sem querer competir com elas, seja lá sobre o que for essa competição.
(Um adendo: digo aqui da competição invisível que nos come de quatro desde sempre, não alguma competição saudável que eventualmente se queira entrar).
**
Estou lendo Dias de Abandono, de Elena Ferrante, e Olga é insuportável em vários momentos.
Ela, abandonada com filhos e cachorro, dada de comer aos corvos pelo homem em quem confiou nos últimos quinze anos, é insuportável.
É insuportável olhar para ela e ver que ela não reage, não dá a volta por cima, não encontra outro homem logo.
Acho que nós, mulheres, vemos dessa forma porque ser mulher já é um fracasso. Então, se você não é uma supermulher, capaz de superar uma traição, um abandono, em menos de quinze dias, então você fracassou duplamente. E isso é imperdoável.
Não acontece isso com o Mario. Ele errou, sim, mas manteve a cabeça no lugar.
Trocou a esposa por uma mulher vinte anos mais jovem, mas pelo menos está feliz, sorridente, não está como ela:
“[...] os cabelos emaranhados, os olhos sem maquiagem, o nariz inchado com o algodão e o sangue [...]”.
Gosto da Olga porque ela é muito real. Quando somos traídas, o que mais queremos é que a pessoa volte para nós rastejando, arrependida. Fantasiamos com isso e, em alguns casos, até acontece.
Ela não se finge de forte quando não está.
***
O corpo de uma mulher muda com o passar de um casamento.
Os filhos, conforme vão passando por dentro de seu corpo, transformam a sua estrutura e a sua forma.
Os hormônios, os músculos, a forma como se respira o ar — tudo muda.
Então vem um cara, mais jovem, e te engravida duas vezes, vamos supor.
Vamos supor que você já tenha um filho mais velho, advindo de uma relação na adolescência.
Vamos supor que, durante a gravidez, você precise implorar para que esse cara pare de ficar com outras garotas.
Então, obviamente, vai-se odiar essas outras garotas, afinal, como se poderia odiar o pai de seus filhos? Além de tudo, está apaixonada.
O cara aquiesce, aceita não enfiar o pau em outras.
Vamos supor, então, que os anos passem.
Esse cara, até onde se sabe, não tinha enfiado o pau em mais ninguém... até um dia.
Um dia ele vê sua esposa e seus filhos já crescidos e pensa: por que não?
Depois, ele pede perdão, mas já não quer mais estar junto.
Você, em seu novo corpo, também não quer mais.
Tem as crianças, o trabalho para dar conta, a casa.
E ele? Vai baixar um Tinder e pegar todas as amigas.
Somos todas Olga, por isso merecemos empatia e compaixão.
QUE TEXTO! você é mesmo maravilhosa e eu amo esse livro, a capacidade da Elena Ferrante em falar sobre as micro opressões que as vezes não percebemos se não colocamos sobre um lente de aumento.